segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

A arte da educação

A arte deve antes de tudo e em primeiro lugar embelezar a vida, portanto fazer com que nós próprios nos tornemos suportáveis e, se possível, agradáveis uns aos outros.
Friederich Nietzsche

Todo assunto relacionado ao “humano” é amplo e complexo. E toda essa
complexidade é definida de acordo com o direcionamento do pensamento, que contribui para a formação do ser. Este ser é visto como processo, virtualidade, parte de uma matéria desfragmentada e se unem num processo de afinidade – processo de estabilidade, que pode ser denominado aqui como metaestruturação ou ainda metaestabilidade.
A metaestabilidade é quase um processo de formação de algo novo, conhecimentos novos, mudanças novas, comportamentos novos, e os processos históricos nos trazem os parâmetros para que haja essa transformação estável.
Podemos nos remeter à Revolução Francesa, no século XIX. É correto afirmar que esse período foi o “inaugurar” da modernidade, pois trouxe modificações de alguns conceitos já estabelecidos. Anterior a este momento, Deus e monarca eram a fusão plena da soberania – a fala do rei era embebida do poder divino. Com o advento da Revolução Industrial, houve a dita mobilidade social, a qual progrediu de tal modo que as seguranças tradicionais não existem mais.
Cada período histórico se pensa a realidade que em sua época era eficiente, e a ideia de forma e matéria incorporou-se ao senso comum. Uma das principais questões da fenomenologia é: de que fundamenta o ser humano? O homem quer um papel destacado na natureza, e a fenomenologia descreve as experiências originárias estruturais do corpo.
O corpo é afetado a todo momento – em diferentes graus de potência. Mas, primeiro o conhecimento empírico, a ciência vem depois. Cada época tem uma experiência ontológica que, consequentemente, segue o rumo da
linguagem: LINGUAGEM – EXPERIÊNCIA – NARRAÇÃO.
E é no processo de mudança de conceitos que encontramos Gilles Deleuze. A filosofia de Deleuze é antidoxa, rompe com o senso comum. Faz o pensamento acontecer, já que o senso comum não deixa o indivíduo pensar – é contra a “verdade absoluta”. Apresenta a teoria do caos como causalidade, que são ocorrências múltiplas e recorrentes, convergentes e
divergentes. Faz uma filosofia para se pensar na imanência e não na transcendência, ou seja, pensar os acontecimentos como fluxos, sem recorrer a nenhum plano, sem recorrer a Deus.
Pode-se ter ideias que se conjugam e se fortalecem, mas uma ideia não produz outra, um pensamento não produz outro. A linguagem é o sujeito de enunciação e o sujeito do enunciado. Se não há palavras (signos) e sujeito, não há linguagem e, consequentemente, não há ideia ou pensamento algum.
Em Mil Platôs V. 3, Deleuze cita o surgimento da linguagem, por volta de 10.000 a. C., que representa o movimento antropomórfico – o surgimento de sinais de expressão. Desde os primórdios é possível afirmar que a linguagem não é para informar, pois é uma concepção representacionista. A linguagem é ordem – imposição ao outro, é potencialidade. E a
construção de potências de novas palavras de ordem é chamado devir poder.
A vida social é de conflito o tempo todo, promovido pelo conceito e os dogmas da moral, levando a cada vontade de potência querer ir até às últimas consequências. Toda palavra e sua estrutura é de ordem, e acusa toda sua virtualidade. É preciso rizomatizar, virtualizar. A vontade de potência surge no momento em que é possível se libertar de conceitos antigos para aprimorar em outros novos – os chamados insights.
Toda linguagem como forma de expressão possui um “rosto”, pode-se denominar como rostidade ou rostificação. Não é apenas um rosto, é uma máquina abstrata, virtualidade. Os códigos demonstram a intencionalidade da expressão e não a intenção do comunicador. Na visão de Deleuze, a semiótica não é somente formada por significante e significado – sentido,
e sim significante/subjetivante – rostificação/rostidade, chamada por ele de semiótica mista.
Pode-se afirmar que a literatura é construída através de uma semiótica mista. A literatura assim como seus autores são transformados por uma ética voltada para a vida, não para a moral do ressentimento, e sua linguagem revela superação, experimentação, o próprio devir. Há introspecção no imaginário; não há literatura sem fabulação. A fabulação não consiste em imaginar ou criar um “eu”, eleva-se aos devires ou potências. Criar personagens cuja história narramos a nós mesmos – além do meu “eu” – assume singular intensidade de vida. A faculdade fabuladora é a que vai nos salvar quando a vida estiver se perdendo – o “eu” –, causando enfraquecimento do individualismo, nos colocando em outros mundos com outros princípios e outras realidades, enfraquecendo a auto-suficiência do indivíduo.
A função fabuladora ainda desempenha um papel social que, na preponderância do indivíduo, cria realidades em outras perspectivas, as religiões e crendices criam representações que fogem à realidade produzida pela inteligência. O humano é o ponto de chegada, na filogênese, da evolução social, pois a sociedade é construída pela inteligência, revelando o instinto adormecido no ser humano.
É preciso experimentar, e a fabulação leva às reais experimentações (ação antes, razão depois). A meta é o que movimenta o indivíduo, é tirar da moral as linhas de fuga que ainda estão por ali, é romper com a identidade.
As pessoas estão buscando nixos que possam oferecer portas que as levem a conhecer a si mesmas. São levados a subjetivar-se por si mesmos. Deve-se arriscar no mundo de hoje, principalmente no campo ético, onde o sujeito é convidado a se arriscar sem garantias de respostas, pois a tradicionalidade se desintegrou. Jaques Lacan já se remetia a essa
problemática, pois a moralidade é tentadora. É uma garantia que nos leva a ser sob os moldes da moral. Sofre-se pelas certezas, pelo que se acredita piamente.
A experimentação leva a um fluxo de ideias, transforma-o em códigos, levando à formação de máquinas desejantes. Na educação, esse fluxo é o conhecimento. A aprendizagem se faz inconscientemente, é um caso particular de desejo, é uma conjunção de valores éticos e lógicos, valorizados pela experimentação.
Condicionamento não leva a pensamento. O pensamento é dito como processo de subjetivação, ou constituição de modos de existência e, ainda, a invenção de novas possibilidades de vida, conforme os conceitos de Nietzsche.
O ato de pensar se tornou obsoleto, não existem mais pensadores. Em nossa
atualidade, a educação deve fazer alguém ser capaz de criar e aprimorar habilidades, capacitar o campo psíquico intrínseco ao campo das ideias, ao campo criativo. Em contrapartida, a conectividade com a virtualidade desta época tem sido o foco principal para a integração ou
exclusão do indivíduo. A exemplo do livro “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, o sujeito tende a seguir em uma “cegueira” capitalista, desde os insentivos criativos quando bebê até à escolha de sua pós-graduação. O sujeito é compelido a um assédio de informações sem conjecturas para não estar atrás da corrente sistêmica, em correspondência aos nixos supracitados.
Aprender não é um ato de adequação ao registro da representação, mas sim agenciar-se com a aprendizagem através da experimentação, é a corporificação do conhecimento. A aprendizagem não é analítica ou reflexiva. A repetição é o caminho para a corporificação. Em suma, aprender é experimentar constantemente, atentando para suas variações e mutações.
Sempre será possível ao espírito científico variar-lhe as condições, em suma sair da contemplação do mesmo para buscar o outro [...]. Precisar, retificar, diversificar são tipos de pensamento dinâmico que fogem da certeza e da unidade, e que encontram no sistema homogêneo mais obstáculos do que estímulo.
A vida é uma obra de arte. Assim como uma bateria de testes, a educação engloba a vida com toda sua singularidade, subjetivando os processos criativos, gerando e dinamizando os diversos domínios do saber, experimentando incansavelmente, levando em consideração a afirmação de Deleuze:"É preciso considerar a filosofia, a arte e a ciência como espécies de linhas melódicas estrangeiras umas às outras e que não cessam de se interferir [...] o que é preciso ver é que as interferências entre linhas não derivam da vigilância ou da reflexão mútua. Uma disciplina que se desse por missão seguir um movimento criativo vindo de alhures abandonaria ela mesma toda função criadora".

Por Fabiana de Almeida

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